Negra, escritora, autora de Um defeito de cor.
Caro Ziraldo,
Olho a triste figura de Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, estampada nas camisetas do bloco carnavalesco carioca "Que merda é essa?"
e vejo que foi obra sua. Fiquei curiosa para saber se você conhece a
opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria
que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de
humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves
momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do eugenista Monteiro Lobato que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, desabafou: "(...)Dizem
que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e
dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num
desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que
volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas
as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da
África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão,
vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e
liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela
manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como
sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem
perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara.
“Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como
sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre
negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!..." (em
"A barca de Gleyre". São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).
Ironia
das ironias, Ziraldo, o nome do livro de onde foi tirado o trecho acima
é inspirado em um quadro do pintor suíço Charles Gleyre (1808-1874),
Ilusões Perdidas. Porque foi isso que aconteceu. Porque lendo uma
matéria sobre o bloco e a sua participação, você assim o endossa :
"Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com
uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha.
Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com
essa brincadeira de achar que a gente é racista". A gente quem,
Ziraldo? Para quem você se (auto) justifica? Quem te disse que racismo
sem ódio, mesmo aquele com o "humor negro" de unir uma mulata a quem
grande ódio teve por ela e pelo que ela representava, não é racismo?
Monteiro Lobato, sempre que se referiu a negros e mulatos, foi com
ódio, com desprezo, com a certeza absoluta da própria superioridade,
fazendo uso do dom que lhe foi dado e pelo qual é admirado e defendido
até hoje. Em uma das cartas que iam e vinham na barca de Gleyre (nem
todas estão publicadas no livro, pois a seleção foi feita por Lobato,
que as censurou, claro) com seu amigo Godofredo Rangel, Lobato
confessou que sabia que a escrita "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente".
EXTRAÍDO DO BLOG OFENSIVA NEGRITUDE
OUTRO TRECHO DA INTERESSANTE CARTA
ResponderExcluir"Peguei-o para bode expiatório, Ziraldo? Sim, sempre tem que ter algum. E, sem ódio, espero que você não queira que eu morra por te criticar. Como faziam os racistas nos tempos em quem ainda linchavam negros. Esses abusados que não mais se calam e apelam para a lei ao serem chamados de "macaco", "carvão", "fedorento", "ladrão", "vagabundo", "coisa", "burro", e que agora querem ser tratados como gente, no concerto dos povos. Esses que, ao denunciarem e quererem se livrar do que lhes dói, tantos problemas criam aqui, nesse país do futuro. Em uma matéria do Correio Braziliense você disse que "Os americanos odeiam os negros, mas aqui nunca houve uma organização como a Ku Klux Klan. No Brasil, onde branco rico entra, preto rico também entra. Pelé nunca foi alvo de uma manifestação de ódio racial. O racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos”. Se dependesse de Monteiro Lobato, o Brasil teria tido sua Ku-Klux-Klan, Ziraldo"